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O lobista de Dantas

Do parajornalismo ao lobby empresarial para enviar informações para comentar

Na longa noite de São Bartolomeu, tudo foi permitido à direção da revista Veja. Poucas vezes se assistiu na imprensa brasileira a tal festival de violência gratuita, de deslumbramento, de demonstração de força, de ataques generalizados contra a honra de terceiros, atropelando normas básicas de jornalismo como novos ricos do poder.

Assemelhavam-se a um bando de alucinados armados, atirando contra qualquer vulto que se mexesse à sua frente.

Muitos episódios ficarão na lembranças dos leitores. Não apenas as capas - de uma agressividade incompatível com uma grande publicação -, mas as matérias estranhas de assassinatos de reputação em disputas comerciais, a manipulação da lista dos livros mais vendidos para beneficiar um diretor da revista.

Dentre todos os assomos de anti-jornalismo, quando todos os detalhes forem conhecidos, a herança que terá desdobramentos , será os motivos que levaram a direção da revista a permitir que o colunista Diogo Mainardi praticasse o mais escancarado lobby empresarial que a grande imprensa brasileira tida por séria já produziu. E em defesa do mais polêmico empresário brasileiro, Daniel Dantas, preso pela Polícia Federal sob a acusação de formação de quadrilha.

O episódio é relevante para se aprofundar sobre o papel da mídia nesse jogo, dos jornalistas que, sob a batuta de Dantas, manipularam informações com o claro intuito de influenciar o Judiciário.

É o caso de Diogo Mainardi.

Desde a morte de Paulo Francis se apresentaram vários candidatos à sua sucessão. No Estadão, Daniel Piza; na Folha (depois no Estadão) e no sistema Globo, Arnaldo Jabor, que acabou levando o cetro por seu conhecimento, talento e histrionismo. E uma malandragem tipicamente franciana.

Mainardi foi a aposta de Veja, forçada em quem não dominava princípios básicos de política, economia, de história e tinha evidente dificuldade em diversificar temas para suprir uma coluna apenas semanal.

Copiava Jabor. Mas sem sua cultura e talento, a diferenciação se dava na grosseria e na certeza de contar com as costas largas da Abril - garantindo advogados e pagamento das condenações pecuniárias.

Rompidos os limites jornalísticos, o que se seguiu foi mera conseqüência.

As ligações com Daniel Dantas surgiram a partir de 2005. Dois episódios em particular expuseram a revista de maneira imprudente.

O primeiro foi na confusão em que a revista se meteu no episódio das contas de autoridades no exterior (O dossiê falso). Como se recorda, o material foi fornecido por Dantas; o editor incumbido de ir atrás apurou que era falso. Para salvar a cara de Dantas, o diretor da revista Eurípedes Alcântara incumbiu Mainardi de conseguir uma “entrevista” com o banqueiro, que serviria como contrapeso à revelação sobre a falsificação (O dossiê falso).

Mainardi trouxe um relatório claramente preparado pelos próprios advogados de Dantas, com as perguntas e respostas prontas. O amadorismo editorial da revista não a levou sequer a adaptar a entrevista aos padrões da própria revista – consolidados há três décadas, pelo menos.

À esquerda o padrão de edição ping-pong. À direita a "entrevista" feita por Mainardi

O segundo – mais grave – foi nos eventos que cercaram as negociações da Brasil Telecom com a Telemar.

Para se prevenir contra denúncias, que poderiam enfraquecer sua posição negocial, Dantas acionou Mainardi de forma intensa. Criou-se um gancho – o tal relatório que estaria sendo preparado pelo Ministério Público italiano, cujas informações Mainardi vazava seletivamente.

Mainardi passou a mencioná-lo constantemente, com insinuações de que conteriam denúncias contra jornalistas brasileiros que supostamente teriam sido subornados.

Aqui no Blog, desafiei-o a abrir as informações, com base em um princípio elementar: jornalista (ainda que parajornalista) que diz ter uma informação, não a divulga e a utiliza como ameaça é chantagista. O desafio desarmou o blefe. E aí Mainardi se perdeu.

A série "O Caso de Veja" já conseguira chamar a atenção da opinião pública esclarecida, incluindo as redações. Os capítulos acabaram jogando um holofote sobre sua atuação.

Mesmo assim, não parou, provavelmente devido a compromissos que o impediriam de interromper o lobby. As negociações entre Dantas e os controladores da Telemar estavam a pleno vapor. As denúncias vazadas para Mainardi visavam coibir as críticas - através de chantagem explícita -, enrolar a opinião pública de maneira a fortalecer a posição de Dantas. Em plena batalha, não se viu em condições de suspender sua operação.

Com a credibilidade abalada, decidiu publicar uma nova coluna e colocar na Internet o tal relatório, em PDF. Foi sua perdição. Leitores do Blog constataram que, ao contrário do que Mainardi afirmava, o relatório fora escaneado no Brasil, páginas haviam sido suprimidas denotando manipulação.

Nesse ínterim, a revista CartaCapital conseguiu entrevistar Angelo Jannone, ex-chefe da segurança da Telecom Italia no Brasil - e alvo de investigações do Ministério Público italiano. Mainardi julgou que tinha conseguido o seu álibi.

Um roteiro para entender

Antes de avançar no nosso roteiro, vamos entender melhor o papel de cada personagem na novela italiana.

Nos primeiros anos à frente da Telecom Italia, o cappo da Pirelli Tronchetti Provera entrou em guerra comercial pesada contra Daniel Dantas.

Àquela altura, contratada por Dantas a Kroll atuava a todo vapor, grampeando autoridades, jornalistas, alimentando a imprensa cooptada. Para enfrentá-la, foi enviado ao Brasil o ex-carabineiro Angelo Jannone, que acabou sendo peça central na divulgação do chamado “ dossiê Kroll”- que, comprovando grampos em autoridades brasileiras, levou à abertura do inquérito pela PF e pelo MP.

O chefe de Jannone era Giuliano Tavalori - que foi preso por um ano, sob a acusação de comandar o esquema de espionagem da companhia, em um inquérito que apurava escândalos da Parmalat italiana.

Tavalori tinha como assessor Marco Bernardini, personagem menor do jogo, ex-agente do serviço secreto italiano, que deixou a função para trabalhar na Global, agência particular de investigações de Gianpaolo Spinelli, ex-agente da CIA.

Em determinado momento, esse Bernardini procurou a justiça italiana e passou a fornecer espontaneamente um conjunto de informações sobre o Brasil.

Em um inquérito, as informações de uma testemunha são colocadas sem juízo de valor. Mais tarde, caberá às investigações, a ao juiz, decidir se são falsas, verdadeiras ou não comprováveis.

No meio do caminho, surgiu também uma tradutora que passou a distribuir informações para a imprensa brasileira.

Com base nas declarações de Bernardini e da tradutora, montou-se o esquema jornalístico de Dantas na imprensa brasileira – tendo como ponta de lança as colunas de Mainardi.

Tornou-se quase um jogo de tiro ao pato. Bastava Bernardini formular qualquer suspeita, as declarações irem para o inquérito, o inquérito ser vazado para os jornalistas do esquema e estes fuzilarem os recalcitrantes. Qualquer nome que entrasse na história, ainda que mencionado de passagem, era exposto como suspeito por Mainardi, em colunas que, mesmo não fundamentadas, ecoavam em 1,2 milhão de exemplares.

A estratégia de procurar manipular o Judiciário com informações falsas ou dirigidas tornou-se escancarada. Na coluna em que mencionava o relatório, Mainardi informava que o estava encaminhando às autoridades judiciais. A manipulação não se limitava mais a produzir factóides, informações falsas ou verdadeiras que eram aproveitadas por Dantas nos diversos processos que enfrentava. Agora, era a entrega direta da documentação a juízes.

Mainardi se expõe

Voltemos, agora, à entrevista da CartaCapital com Angelo Jannone (clique aqui).

Aparentemente assustado com a revelação da sua jogada com Dantas, Mainardi apelou para o testemunho de Jannone, mencionando a entrevista como comprovação da sua inocência e confirmação das fontes a que tinha acesso. Segundo ele, Jannone seria uma delas. E, aí, escancarou a guarda e permitiu juntar as últimas peças que faltavam para entender sua atuação.

Indagado pela CartaCapital se havia sido procurado por alguém da Veja, Jannone respondeu:

AJ: Uma vez, pelo telefone, me procurou o Mainardi. Creio que quem deu meu número foi um jornalista italiano. O mesmo a afirmar que os documentos do processo em andamento por aqui eram passados a Mainardi pelo próprio Bernardini.

CC: Quando Mainardi telefonou?

AJ: Em 2006. De saída, Mainardi disse saber que sou um bom sujeito, em seguida declarou sua intenção de perseguir a turma do PT por ter certeza de que recebera propinas.

Foram essas as declarações de Jannone.

No dia 8 de abril de 2008, em seu podcast semanal, Mainardi declarou o seguinte:

"Em vez de mentir a meu respeito, declarando que fabriquei o documento, o araponga da Telecom Italia reconheceu sua autenticidade, dando até o nome do indiciado que o teria remetido para mim".

Jannone apenas mencionara que recebeu um telefonema de Mainardi em 2006. Não havia uma palavra sequer sobre o documento publicado por Mainardi.

Mainardi prosseguia:

"Além de me acusar de ter forjado documentos, a ala mais aloprada da imprensa paraestatal me acusou também de inventar fontes jornalísticas na Itália. O entrevistado de Carta Capital desmentiu os aloprados. Numa enfiada só, ele revelou três de minhas fontes: ele mesmo, um jornalista e o indiciado que me teria repassado os documentos oficiais do tribunal italiano".

Jannone simplesmente não se referira a fontes ou documentos. Mainardi se fiava na diferença de cobertura da Veja em relação à CartaCapital para desenvolver uma tese fantasiosa.

"A imprensa paraestatal ficou meio abobalhada com esses dois desmentidos, tanto que engendrou uma trama ainda mais fantasiosa do que a anterior: sim, os documentos que publiquei talvez fossem verdadeiros, mas nesse caso o próprio inquérito italiano estaria contaminado por Daniel Dantas. Além de manipular dossiês, Mainardi manipulava as denúncias. A denúncia era de que o relatório manipulava dados do inquérito da polícia italiana".

A denúncia é que o arquivo de Mainardi mostrava claramente diferenças de numeração, indicando que quem o montou poderia ter misturado peças do inquérito italiano com outras de fora.

O documento tem duas numerações. Uma aparentemente a numeração oficial do inquérito. Outra, uma numeração específica do documento. Por exemplo, foram escondidas as 135 primeiras páginas do inquérito original.

Esse estilo de falsear verdades, inventar declarações, criar acusações falsas para poder rebatê-las permeou toda a atividade do colunista nesses anos todos.

Em seu Blog, Jannone publicou um texto em italiano, com o seguinte conteúdo (traduzido):

"Nesse meio tempo, o "segredo" foi revelado: os documentos publicados por [Janaína] Leite e [Diego] Mainardi saíram de repartições do judiciário brasileiro, aos quais não chegaram por canais oficiais (Procuradoria de Milão), mas oficiosos. Interessante! Ficou completo, desse modo, o serviço prestado aos investigados no inquérito brasileiro (Operação Chacal). Ou seja: textos são introduzidos no processo italiano, as declarações (que se transformam em declarações oficiais) acabam chegando por canais misteriosos àqueles que os fornecem ao Ministério Público brasileiro, e alguns deles, por sua vez, à imprensa. Salva-se a cara, salva-se o processo. Só não se salva a verdade".

A entrevista com Jannone

Não existem mocinhos nessa história, mas vamos à versão de Jannone - que poderá ser conferida nos áudios anexados ao capítulo - que ajuda a colocar algumas peças que faltam nesse quebra-cabeças.

Conta Jannone que, na sua primeira apresentação aos promotores, Bernardini apresentou - sem nada comentar - a reportagem de capa de Veja sobre as tais contas secretas de autoridades brasileiras no exterior (“O Dossiê Falso”). A mesma capa que Eurípedes procurou salvar colocando Mainardi para simular a entrevista com Dantas.

Jannone diz mais: no inquérito italiano, o advogado de Bernardini afirma que na última vez que veio ao Brasil foi para encontrar-se com Marcos Valério - o publicitário que ajudou a financiar o "valerioduto" e que tinha a conta da Telemig Celular, no tempo em que era controlada pelo Opportunity.

Seu depoimento, somado às matérias que têm saído de jornalistas ligados a Dantas, permitem identificar nitidamente a estratégia de Mainardi, com a qual a direção de Veja passou a compactuar, com Eurípedes servindo de avalista junto à Abril – sustentando que as colunas se baseavam em provas concretas.

A entrevista com Jannone foi gravada com sua autorização. Reproduzo trecho a trecho para facilitar a compreensão dos leitores.

Trecho 1 - Jannone diz que o inquérito começou com declarações mentirosas de fontes. No começo não conseguiu entender. Depois, ficou mais claro. No início de sua "colaboração" com a justiça italiana, Bernardini ficou falando do Brasil. Ele não conhece o Brasil, nem tem cabeça refinada para falar o que falou, diz Jannone. A imagem que Bernardini tentava passar era de uma Polícia Federal brasileira corrupta. políticos corruptos, e Jannone responsável pelos subornos. A coisa mais estranha, diz Jannone, é que no primeiro dia de interrogatório dele, entregou aos promotores, sem nada comentar, a famosa reportagem da Veja que falava de contas bancárias do presidente Lula, do chefe da Polícia Federal, Lacerda. Mas de forma estranha, sem comentar, como se outra pessoa tivesse dito a ele: se você vai lá, entrega isso.

Trecho 2 – depois apareceu uma testemunha, esta Araújo (a tradutora), contando uma história absurda, de ter ouvido, como tradutora, conversas entre funcionários da Telecom Italia que falavam de corrupção e propinas a políticos brasileiros. E que estas conversas chegaram do Brasil por meio de Angelo Jannone. A tradutora fala que conversas estavam armazenadas em uma pasta de computador chamada "Telegrafo". Os promotores não perceberam que a pasta já tinha sido entregue por mim, diz Jannone. E que conversas não eram entre executivos da Telecom Italia, mas de um amigo conversando com lobistas e executivos da Brasil Telecom, que contavam a ele como a Alcatel, a Ericsson, todas essas empresas de tecnologia, tinham que pagar propina para obter trabalhos na Brasil Telecom. E pagavam ao banco do Dantas. "Depois vou descobrir, analisando os documentos do processo de Milão, que o advogado de Bernardini viaja muito frequentemente para o Brasil e é amigo do Marcos Valério", diz Jannone.

Trecho 3 – diz ter sido preso por causa do Bernardini que contou "histórias absurdas". Depois, Dantas, que chegou à Itália "contando essa história fabulosa de que foi vítima de conjura preparada por Angelo Jannone contra ele, quando todo mundo sabe no Brasil que a investigação da Polícia Federal aconteceu independentemente da história da Parmalat", diz Jannone. Os promotores não vão aprofundar esses esforços no Brasil, porque na opinião deles o Brasil é país de corruptos, então não precisa fazer rogatórias no Brasil.

Trecho 4 – Jannone se diz vítima de declaração caluniosa do Dantas, que chegou na Itália afirmando que jornais brasileiros falavam que Jannone muito próximo à Polícia Federal. Era mentira, diz Jannone, que afirma ter tomado conhecimento dos documentos de investigação da PF através de um jornalista do JB.

Trecho 5 – quando foi fechado acordo entre Telecom Italia e Dantas, provavelmente já começou a estratégia para contornar as investigações do Ministério Público italiano. Essa estratégia teria que passar sobre a minha cabeça, diz Jannone.

Trecho 6 – "minha entrevista à Carta Capital não comprovava nada", diz ele. Disse apenas que Mainardi o procurou mais ou menso dois anos atrás, comentando aquilo que teria contado Bernardini sobre lobistas, políticos, essas declarações genéricas. "Olha, eu quero só confirmar..." Eu respondi: "Senhor Mainardi, eu não confirmo nada porque não é verdade. Eu jamais mandei pagar políticos ou funcionários públicos brasileiros".

Trecho 7 – saiu outra coisa interessante, que foi a entrega ao Mainardi desse material do inquérito italiano. Se descobrir quem entregou, se poderia entender muito melhor o jogo, diz Jannone. Seria interessante saber quem entregou ao Mainardi minha ordem de prisão, diz Jannone. Mesmo jornalistas italianos nada sabiam.

Trecho 8 – No final de 2007, o advogado do Bernardini, falando com os promotores - está escrito isso - fala "olha, a última vez que fui ao Brasil, encontrei Marcos Valário, que foi por sua vez aproximado por uma pessoa que pedia informações sobre o inquérito de Milão. Porque ele está dizendo isso? O que tem a ver o advogado do Bernardini com o Marcos Valério? Isso seria interessante aprofundar, diz Jannone.

Trecho 9 – nunca fui fonte da Janaina Leite, diz ele. "Ela me procurou quando chegou na Itália, me procurou por telefone, querendo uma entrevista. Eu disse que, sendo que trabalhava na Telecom Italia naquela época, não podia dar entrevista. Ela disse que queria comentário sobre o que declarou Bernardini, que dizia que pagou propina. Disse que Bernardini era mentiroso e podia demonstrar. Se você vai escrever isso, vou processar a "Folha de São Paulo", disse ele. "Depois, fui avisado do Brasil de que Janaína Leite não era uma jornalista independente, falando dessa forma. Me disseram para tomar cuidado. Ela me escreveu email dizendo que só queria descobrir a verdade, que estava disponível quando quisesse conversar. Disse que a verdade seria descoberta em processo, não em jornais.

Trecho 10 – Menciona o papel de Bernadini nesse inquérito.

Trecho 11 - Fala sobre os honorários do advogado Marcelo Elias. A Telecom Italia, de Provera, quando guerreava com Dantas resolveu bancar as custas judiciais de Luiz Demarco contra Dantas na Inglaterra. No meio do caminho houve o acordo de paz entre Provera e Dantas. Mas Demarco continuou a guerra e exigiu que a Telecom Italia pagasse os advogados contratados, conforme o combinado. Jannone confirma que todos os pagamentos foram comprovados. E diz ter pago Elias em um paraíso fiscal para não expor a empresa. Mainardi sempre se referia a esses honorários (US$ 100 mil) como sendo destinados a propinas no Brasil.