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A guerra das cervejas

As relações com o publicitário Fischer para enviar informações para comentar

Há muito tempo, o publicitário Eduardo Fischer recebe tratamento privilegiado da Veja, especialmente através da seção Radar. Esse apoio ficou mais ostensivo nas chamadas "guerras das cervejas"

As notas visavam criar expectativas em cima de suas campanhas, reforçar sua imagem, em um mercado onde a imagem tem efeito direto sobre o valor das contas.

Em 25 de junho de 2003, o Radar anunciava uma nova campanha na praça, da Shincariol, comandada por Fischer. Seu papel não seria de um mero publicitário:

“Eduardo Fischer – justamente o publicitário que inventou para a Brahma o slogan "a número 1" – estará à frente da esquadra da Schincariol. Ele não criará somente as campanhas publicitárias. Fischer se meterá também na distribuição, estratégia de preços, criação de novos produtos e tudo o mais.”

Em 20 de agosto de 2003, o Radar falava de uma “ousada tacada” da Schincariol, que “viria nas asas de uma das maiores campanhas publicitárias que já se viram no setor de cervejas”. A idéia seria fazer desaparecer a marca Schincariol do mercado e, em seu lugar, criar uma nova marca para enfrentar a líder Skol.

Informava que “o publicitário Eduardo Fischer, comandante- em-chefe da virada da Schincariol, não confirma a informação. Mas onde há fumaça, há fogo – ou, neste caso, onde há espuma, há cerveja".

Em 18 de dezembro de 2003, uma grande matéria sobre a guerra das cervejas, mais uma vez enaltecendo o trabalho de Fischer.

“A gota de água dessa guerra foi uma brilhante campanha de propaganda feita para a Nova Schin pelo publicitário paulista Eduardo Fischer. Em noventa dias, ao custo estimado de 80 milhões de reais, Fischer conseguiu elevar a participação de mercado da Schincariol de 10,1% para 14,1%, segundo dados da ACNielsen. O salto é estrondoso.”.

Uma semana depois, em 24 de dezembro de 2003, através de um expediente bisonho abre-se novo espaço para Fischer, na seção de Cartas dos Leitores: a publicação de uma carta do próprio Fischer, dividindo as honrarias recebidas com sua equipe. (clique aqui):

“Agradeço a menção elogiosa feita pela revista à campanha publicitária produzida pela FischerAmérica para um de seus clientes, o Grupo Schincariol, mas gostaria de ressaltar que a realização de um importante trabalho criativo não pode ser creditada a uma só pessoa. Quero destacar que a "brilhante campanha de propaganda feita para a Nova Schin", como a própria VEJA definiu, é fruto da competência, envolvimento e ativa participação de toda a equipe de criação da agência FischerAmérica, da qual muito me orgulho, em especial do diretor de criação, Átila Francucci.”

Cada passo de Fischer na Schincariol era precedido de espuma, na Veja – quase sempre na seção Radar, às vezes na Holofote.

Em 14 de janeiro de 2004, um mês após as notas anteriores, nova nota no Radar antecipando mais um sucesso do publicitário (clique aqui):

O "Experimenta" muda de guerra

“Agora que, pela nova regulamentação da propaganda de cerveja, não pode mais usar o "Experimenta" nos comerciais da Nova Schin, a Schincariol está estudando uma idéia que vai dar o que falar. Deve utilizar o mais bem-sucedido bordão publicitário dos últimos tempos para o relançamento do guaraná da empresa – que vem aí para incomodar o eterno líder Guaraná Antarctica e o Kuat.

O jogo de levantar a bola continuou em 2005. Durante toda a campanha da Schincariol, não havia mais ninguém para compartilhar do mérito: apenas Fischer. Em qualquer matéria consistente de negócios, há análises sobre outros fatores, como distribuição, pontos de venda, estratégias comerciais. Nas matérias da Veja, enfatizava-se apenas o lado de marketing e a genialidade de Fischer.

No dia 9 de dezembro de 2005, por exemplo, o Holofote soltava uma nota laudatória sobre o publicitário (clique aqui):

O caso Femsa

Depois que Fischer perdeu a conta da Schincariol, a revista não falou mais da empresa, a não ser em matérias policiais, quando a diretoria foi presa por sonegação de impostos. A cerveja preferida agora, era outra, a Kaiser, a partir do momento em que contratou o publicitário.

Nodia 24 de maio de2006, Radar reservou seu melhor espaço para a contratação de Eduardo Fischer pela mexicana Femsa – que havia adquirido a Kaiser. Era um Boxe, com cor diferenciada e foto do publicitário, um lugar de destaque na seção de maior leitura da revista.

A nota era altamente laudatória.

Ele já produziu campanhas para Brahma, Skol e Nova Schin. Para a última, criou o slogan "Experimenta", que a AmBev denunciou como ilegal em 2003. Curiosamente, um relatório do banco Bear Stearns divulgado na semana passada afirma que a AmBev copiou a campanha do "Experimenta" no Peru. Até o momento, Fischer tem se recusado a falar sobre esse assunto.

No dia 4 de outubro de 2006 uma nota do Radar visava criar expectativa sobre a campanha da Femsa (clique aqui).

“O grande segredo do mercado publicitário e do setor de cervejas começa a ser desvendado nos próximos dias. Mas só em parte. Trata-se da retumbante estratégia da Femsa, a mexicana dona da Kaiser, para sacudir o mercado. O objetivo do diretor da Femsa, Ernesto Silva, é sair rapidamente dos cerca de 7,5% de participação de mercado para dois dígitos. Reservadamente, ele tem dito que haverá uma megacampanha para recuperar a marca Kaiser”.

A nota também saíra com destaque no Radar, em um box colorido e com a foto do diretor da FEMSA, Ernesto Silva.

No dia 18 de outubro de 2006, saiu uma matéria grande na editoria de Economia, “Duelo de Gigantes no Brasil”: “Mais uma guerra das cervejas está em curso. Desta vez, entre duas multinacionais” (

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Alguns pontos chamavam a atenção. Apesar das duas cervejarias estarem em São Paulo, a matéria foi preparada pelo repórter Ronaldo Soares, da sucursal do Rio de Janeiro, e editada pelo mesmo Lauro Jardim.

A matéria dizia que a Ambev teria montado uma sala de guerra para enfrentar os mexicanos. Seriam dois os motivos:

“Primeiro, a publicação de uma foto em que a bela atriz Karina Bacchi aparece beijando José Valien, conhecido como o "baixinho da Kaiser". Parte da imprensa chegou a acreditar que se tratava de um novo casal na praça, mas a tropa mobilizada pela AmBev não tardou a descobrir a verdade: era jogada de marketing da concorrente”

O outro motivo de alvoroço nas fileiras da AmBev foi que no mesmo dia começou a ser veiculada na TV a nova campanha publicitária da Femsa, gigante mexicana que comprou a Kaiser no início do ano. Os dois episódios marcaram o início de mais uma guerra das cervejas. Esse promete ser um combate como nunca houve no país. Mais barulhento do que o ocorrido em 2003, quando a Schincariol lançou a Nova Schin e surpreendeu o mercado com o bordão "Experimenta". Ou do que o duelo entre as brasileiras Brahma e Antarctica, no início dos anos 90”.

A falta de habilidade jornalística era nítida. Era necessário mobilizar uma tropa na Ambev para descobrir que o "caso" entre o Baixinho e a atriz Karina Bacchi era jogada publicitária. Provavelmente, foi a mesma tropa que descobriu que Papai Noel não existe.

Na Ambev ninguém entendeu a razão da matéria. O fato da Femsa ser multinacional não significava nada, já que a Kaiser foi vendida para ela por outra multinacional – a canadense Molson – que falhou. No campo específico das cervejas, a Molson era maior que a Femsa - que também é sócia da Coca-Cola.

Depois, a troco de quê o Baixinho da Kaiser beijando uma modelo provocaria uma operação de guerra na líder disparada do mercado? E que história era aquela de um "um combate como nunca houve no país"?

Lauro Jardim foi procurado pela Ambev e informado de que não havia nenhuma operação especial contra a Femsa. Foi convidado a visitar a empresa, para conferir se havia alguma sala de guerra. Não adiantou. A matéria ironizou as declarações da Ambev:

"Não houve uma vírgula de mudança em nossas estratégias", diz Alexandre Loures, gerente de comunicação da AmBev. Não é bem assim. Internamente as discussões denotam um pouco mais de preocupação. A sala de guerra da empresa estava em estado de alerta havia meses, aguardando o início da ofensiva de Fischer”.

Não havia nenhuma fonte confirmando essa informação do “estado de guerra”. Tudo era espuma para criar uma expectativa junto ao público, uma guerra capaz de dar visibilidade à campanha e repercussão na mídia.

Como sempre, a matéria não poupava elogios a Fischer.

“O comandante da investida mexicana é o publicitário Eduardo Fischer, que já trabalhou para a rival – foi o criador do slogan "Número 1", para a Brahma – e depois se tornou um especialista em enfrentá-la. "Meu estilo é jiu-jítsu: quanto maior o tamanho (do concorrente), maior a queda", diz Fischer. Ele virou uma pedra no sapato da AmBev desde que criou a campanha "Experimenta", um sucesso tão estrondoso que em pouco mais de dois meses a Schincariol aumentou de 9% para 15% sua participação no mercado e virou um fenômeno no setor de cervejas.

A multinacional aposta que Fischer conseguirá repetir o sucesso da campanha de 2003. Embora a empresa não admita publicamente, sua meta imediata é tirar da Schincariol a vice-liderança nas vendas. "Uma companhia do tamanho da Femsa não vai entrar no Brasil para ser terceiro ou quarto lugar. Para fazer sentido investir aqui, ela vem no mínimo para ocupar a vice-liderança", afirma Poppe, da Mellon.

Guerra Cervejas.pdf

Poucos se deram conta desse jogo. A atenção da opinião pública e das demais publicações estava muito concentrada na campanha que a revista movia contra Lula.

No dia 29 de novembro outra nota no Radar, falando do Baixinho da Kaiser, nota incompreensível:

Baixinho invocado

Sem alarde, o baixinho da Kaiser mudou de namorada. Depois de terminar seu "romance" com a estonteante Karina Bacchi, ele aparecerá nos próximos dias namorando Adriane Galisteu. O cara é fogo!

Qual a justificativa para esse tipo de nota, que destoava completamente do estilo do Radar?

No dia 13 de dezembro de 2006, outra nota do Radar, falando da “artilharia da Femsa”, mas mostrando mudanças irrisórias no mercado (clique aqui):

Resultado (parcial) da guerra

A artilharia da Femsa sobre a AmBev acabou atingindo em cheio a Schincariol e parcialmente a Petrópolis. O resultado de novembro da Nielsen revela que a AmBev cresceu 0,2 pontos porcentuais no segundo mês de ataque da Femsa. Sua participação de mercado passou para 68,8%. A Femsa subiu de 8% para 8,5%. Já a Schincariol caiu de 12% para 11,4%. A Petrópolis perdeu 0,2 ponto porcentual e agora tem 6,7% do mercado.

No dia 5 de abril de 2007, finalmente, a revista Exame produziria uma matéria sobre o fracasso da Femsa:

Até agora, em vez de crescer, mesmo que lentamente, a fatia da empresa nas vendas nacionais de cerveja caiu meio ponto percentual. Está hoje em 8,5%, segundo o instituto AC Nielsen. (A situação já foi pior. Em junho do ano passado, a participação da empresa atingiu 7,4%.) A Sol ainda não pode ser considerada um sucesso de mercado e a Kaiser segue com problemas para aumentar as vendas. Há alguns meses, os mexicanos decidiram reposicionar a marca do Baixinho reduzindo o preço, para que ela passasse a competir com a Antarctica e a Nova Schin.

Mesmo com a confirmação de que a estratégia da Femsa fracassara, através da seção Holofote, Veja insistia em levantar virtudes e afirmar que a empresa estava “incomodando a concorrência”. De que maneira? Com ações na Justiça.

No ano passado, com a compra da Kaiser, a mexicana Femsa entrou no mercado brasileiro de cervejas. O presidente do grupo no país, Ernesto Silva, ainda não conseguiu ameaçar a liderança da AmBev, mas já incomoda a concorrência. A seu pedido, a Justiça determinou a suspensão da venda da cerveja Puerto del Sol, da AmBev, para evitar confusão com a marca Sol, dos mexicanos. Como a ordem judicial não foi cumprida, a AmBev viu-se multada em 15 milhões de reais.

A saga da Femsa na Veja encerrou-se melancolicamente no dia 16 de maio de 2007. A coluna Radar informou que

Abril registrou uma mudança histórica no agitado mercado de cervejas brasileiro. Segundo os dados do Nielsen, a Petrópolis (dona da Itaipava, entre outras) ultrapassou a poderosa Femsa, dona das marcas Kaiser e Sol. É um fato inédito. Agora, a mexicana tem 8% do mercado total, contra 8,1% da brasileira.

A "batalha como nunca houve no país", a "retumbante estratégia", que permitiria à Kaiser ultrapassar a Shincariol e conquistar o segundo lugar, terminava com a Kaiser perdendo o terceiro lugar para a novata Petrópolis.

Uma leitura do balanço da campanha, no portfólio da Fischer América, permitiu entender a insistência da Veja em mencionar o Baixinho (clique aqui).

A campanha “surpreendente” criada para Kaiser também envolveu uma forte presença do Baixinho, gerando intenso boca-a-boca e dezenas de milhões de reais em mídia espontânea gratuita (apuração em novembro de 2006)".

As agências costumam conferir valores a matérias publicadas espontaneamente na imprensa, comparando a centimetragem das matérias com as da publicidade. Uma matéria de tal tamanho na Veja teria um valor considerável na contabilidade da campanha. Sem contar o efeito-indução sobre outras pubicações.

As notas sobre o Baixinho começavam a mostrar sua utilidade.

Durante esse período, a Ambev recebia tiros do Radar. E não de tratava de qualquer empresa, mas de um dos maiores anunciantes da Veja e da Abril. Outros personagens entraram na história, e, só após sua interferência, o Radar voltou a escrever positivamente sobre a Ambev. Como na nota de 7 de março de 2007.

O Trio de Veja

Àquela altura, o duo inicial - Eurípides Alcântara e Mário Sabino - transforma-se em trio, com Lauro Jardim passando a atuar em estreita ligação com o comando da revista.

Não seria a única demonstração da influência de Fischer na revista.

Próximo capítulo: O caso André Esteves

O macartismo e o jornalismo de negócios